terça-feira, 5 de junho de 2012


Na noite passada, como em todas as noites, tive sonhos estranhos e tumultuados, que nada têm a ver com as pessoas que vivem ou convivem comigo. Minha impressão, diante dessa experiência repetida, é que esses sonhos são construídos, meticulosamente, para excluir a realidade. São feitos com um material que segrega o mundo prático e reflete, quase exclusivamente, a nossa subjetividade. Eles são uma reafirmação feroz da nossa individualidade, uma rejeição visceral, biológica, das tentativas humanas de vincular, unir e dissolver. Sugerem que, lá dentro, estamos sozinhos, ainda que amemos e sejamos amados aqui fora.
Mesmo que seja um bocadinho melancólica, essa constatação ajuda a entender algo fundamental na vida dos casais: a impossibilidade de juntar tudo e dividir tudo, a insanidade absoluta de tentar viver como se dois fossem um. 
Assim como na Física há uma lei segundo a qual dois corpos não ocupam o mesmo espaço ao mesmo tempo, deve haver outra lei, no universo subjetivo, que impede duas individualidades de viverem a mesmíssima vida. Tenho a impressão que a insistência em contrariar esse princípio está por trás de muitos e graves desencontros por aí.
Desde a adolescência, e provavelmente ainda antes, somos alimentados com a ilusão de que um dia encontraremos alguém com quem iremos nos fundir. A tal pessoa, aquele, a mulher da nossa vida, o príncipe encantado – todos esses são agentes do destino que teriam a função, na nossa história pessoal, de rasgar a couraça da individualidade, penetrar nosso casulo e nos salvar, de forma permanente, da horrível solidão de ser um indivíduo. A partir desse momento redentor, a nossa dor fundamental seria superada e seríamos, então, felizes para sempre. No outro.
Algumas vezes, mesmo na vida real, chegamos perto desse estado idílico de aniquilação. É quando estamos apaixonados. Nesse momento mágico – e, segundo o Freud, patológico - nossos sentimentos em relação ao outro são tão violentos que parecem romper o isolamento essencial. Em tal estado de comoção de ser parte do outro. Se ele se afasta, sentimos dor. Se ele está perto, sentimos prazer. Parece ser impossível viver sem ele, porque se tornou parte de nós.
No filme “O morro dos ventos uivantes”, com Laurence Olivier, a jovem apaixonada diz ao rapaz “Eu te amo”, e ele responde “Eu sou você”. Não existe na literatura ou no cinema uma declaração de amor mais radical do que essa.  
Há outro momento em que também nos sentimos perto desse sentimento. É no sexo. Em meio ao prazer, aquilo que nós somos desaparece temporariamente em direção ao outro. Mergulhamos numa torrente tão intensa que, por alguns minutos, não somos mais que o conjunto daquelas sensações. Há uma pequena morte aí, um breve suicídio prazeroso no qual mergulhamos felizes, levado pelo corpo e pela personalidade do outro. 
Mas esses momentos são terrivelmente efêmeros, não? Mesmo a mais intensa paixão é passageira. Cedo ou tarde, ainda que contra a nossa vontade, somos arrastados de volta à normalidade de sermos apenas um. Logo chega o momento em que é preciso negociar com a personalidade do outro, com a percepção do outro, com o desejo do outro. Com isso se desfaz a ilusão de pertencer. Deparamos, de novo, com a nossa assustadora e iniludível solidão interior. Sabemos disso, vivemos isso desde crianças, mas uma parte de nós continua sonhando com uma paixão tão arrebatadora, tão dominante, que nos livre para sempre de nós mesmos. Crescer, eu acho, é deixar também essa fantasia para trás. 
Alguns recusam isso terminantemente. Insistem em esperar pelo sonho ou – muito pior - tentam transformar a vida real a dois num exercício de destruição das personalidades. Fazemos tudo juntos, pensamos o mesmo, gostamos das mesmas coisas, compartilhamos as mesmas experiências, dizem. Na boa ou na marra, vão arrastando o outro a uma vivência que é uma réplica da sua. Até o ponto em que, de tão parecidos, não tenham mais nada a contar um ao outro. Então se separam. 
Estou exagerando? Claro que sim. Mas, mesmo entre pessoas que não vivem na caricatura, o impulso comum de controlar o outro faz parte do movimento de negação da individualidade. Ele se recusa a reconhecer o outro com as suas necessidades próprias, sua existência fora de nós. O desejo de aprisionar é o impulso de se proteger do outro, que, insistindo em ter vontade própria, pode fazer algo que nos machuque. 
Enfim, acho que é disso que os sonhos falam. Da nossa vontade de ser forte como indivíduos e do nosso medo oceânico de nos desligarmos dos outros. Da contradição entre a vontade de crescer e o impulso de permanecer um bebê chorão, ligado ao outro por um cordão umbilical. Os sonhos contam que o amor, lindo que é, essencial como possa ser, não nos salva de sermos nós mesmos. Mesmo quem respira suavemente ao nosso lado, adormecida, tem sonhos separados dos nossos. É uma pessoa estranha que amamos, mas sobre a qual nunca saberemos o suficiente. É preciso respeitar esse mistério.
Ivan Martins

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